Prefácio

DAS AVENTURAS REAIS E DAS DESAVENTURAS DOS SONHOS
Andrea Almeida Campos
Professora da Universidade Católica de Pernambuco
Um conto de fadas ou um conto de humanos? Um livro onírico desenhado pelas fantasias das crianças ou um livro real evocado pelas desilusões dos adultos? Ou nenhuma das respostas está correta, sendo, tão somente, mais uma obra-prima que na melhor tradição do “Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carrol e do “ Maravilhoso Mágico de Oz” de L. Frank Baum, da série de livros “Terra de Oz” nos lança à ordem do atemporal e do absoluto, próprio das obras de arte. Sim, meus caros amigos, é irmanada ao que de melhor já se produziu na literatura dita infanto-juvenil e que passa a servir de “bíblia” para adultos que está a obra “As Aventuras do Menino Pontilhado” de Leo Tabosa.

 

Uma história a ser mascada como um chicletes de bola, lambuzada como um pirulito, mordida como um chocolate pelas crianças. Mas pra ser refletida pelos adultos, esmiuçada pelos filósofos, escutada pelos psicanalistas. E quem é o “Menino Pontilhado”? Para as crianças, qualquer uma delas, qualquer uma que está enfadada com a escola, com os professores sem poesia, com os pais desatenciosos, com a falta de hora pra brincar. E para os adultos, quem é o “Menino Pontilhado”? Somos todos e cada um de nós, engolfados por um cotidiano preto-e-branco, por traços fortes de injustiça, pela prevalência do insano e do desumano sobre o humano. Na mesma linha narrativa de “Alice no País das Maravilhas” e do “Maravilhoso Mágico de Oz”, a história se inicia com um menino desencantado com o seu mundo e com tudo aquilo que o cerca, quando, de repente, por magia desse mesmo mundo desencantado ele se encanta ao ser arremessado a um novo mundo, um novo planeta, o “Planeta Lata”.

 

Leo Tabosa, literalmente, encontrou uma “Lata” onde colocar a nossa “Terra”. Mas nessa “Lata” tudo é desenhado, tudo é colorido, é um mundo das fantasias e do lápis-de-cor. Um mundo desenhado tão somente para crianças, onde elas exercem o poder supremo, inclusive o de engolirem a lua para que nunca mais venha a noite e elas não tenham, jamais, que parar de brincar. No entanto Leo nos lança a um paradoxo, aquele que nos informa que viver em um sonho é não ter a possibilidade de sonhar.

 

Ao tomar o sonho por um real permanente, cessa a capacidade de sonhar e de transmutar-se nesses sonhos. Então o mundo dos sonhos e das fantasias não é perfeito, não é um “sonho” justamente porque nele se está interditado a fantasiar e disso pode advir o pesadelo. Joãozinho é o nome do menino, do menino que ao adentrar no mundo onde tudo é desenhado, torna-se ele, também, um desenho, mas um desenho não traçado, um desenho pontilhado. Isso porque, se Joãozinho se sentia deslocado no mundo real, é deslocado que ele também se sentirá no mundo do faz-de-conta.

 

Ele é um esboço, um esboço nos dois mundos, um esboço que pede por integralização. Se ele se integraliza no mundo da fantasia, ele não sairá mais de lá, estará condenado à alucinação permanente, às grades do cárcere dos sonhos. Mas no mundo real o menino, também, não se desenha, ele não se sente pintado, perfeito e acabado e disso eu ousaria dizer que, na perspectiva de uma leitura de adultos, o conto de Léo tem por “leit motif” a problemática da sensação de deslocamento, a sensação do ser humano de estar, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar algum, o “nowhereman” da contemporaneidade.

 

O ser humano da atualidade que se expressa por tantos meios, mas que, ele próprio, não escuta a sua fala, diversamente do mundo do planeta “Lata”, onde todos, sem exceção, seres animados ou inanimados, falam e são escutados. A cada desenho que surge e por onde passa o “Menino Pontilhado”, dá-se um mergulho na vertigem da fantasia. Uma fantasia sem limites, nem mesmo os limites impostos por pai e mãe, já que eles não existem em “Lata”, pois todos os seus habitantes foram, diretamente, criados por um “Desenhista”. Não há ordens por receber, mas também não há colos onde se aconchegar, chorar e sonhar. E o “Menino Pontilhado” é um ser desejante, ele não cessa de desejar e o seu desejo, assim como o de “Alice” de “Alice no País das Maravilhas’, assim como o de “Dorothy” do “Maravilhoso Mágico de Oz” é o de voltar pra casa. Em um mundo que se propõe a ser a realização de todos os desejos, o desejo do menino pontilhado é o de voltar para o seu, para o mundo onde os desejos são bem pouco atendidos. Mas o desejo é soberano e, se existe desejo é porque existe a falta sendo que, mesmo em Lata há espaço para a falta e, por isso, mesmo lá, conhece-se o que é o desejo. “Desejar com muita, com muita vontade”, essa é a senha ensinada pela raposa, uma das amigas encontradas pelo “Menino Pontilhado” que por sua vez também desejava muito se libertar do “menino Pastor” que a agrilhoava.

 

Por essa miríade de personagens onde estão burros falantes, macacos contadores de piadas, meninos que comem lua, uma lua suscetível, raposas e lobos, transita o “Menino Pontilhado” no seu desejo de encontrar o caminho de volta para casa. E ele consegue, o “Desenhista” o concede essa graça. No entanto, diversamente de “Alice” ou de “Dorothy” o “Menino Pontilhado” ao reingressar no mundo real, não se redime da fantasia, não sucumbe e satisfaz-se com a realidade. Não se reencanta com o que já havia lhe desencantado. No seu bolso o “menino” traz algo que é do reino da fantasia, do reino de “Lata”, algo que é o seu passaporte para retornar, quando quiser ao mundo dos sonhos, ensinando-nos que nada, absolutamente nada é perfeito e não importa onde estejamos, sempre haverá algo que nos falta e só o que não pode nos faltar é a capacidade desejante, é a possibilidade de adentrar na nave onírica, sem direção e cheia de mágica que é a nave do sonhar.